segunda-feira, 14 de julho de 2008

ENTREVISTA - RICARDO BALESTRERI

ENTREVISTA - RICARDO BALESTRERI

Novo secretário nacional defende capacitação de policiais para melhorar segurança pública no país

Renata Mariz

Da equipe do Correio

A morte do menino João Roberto Amorim Soares, 3 anos, fuzilado por policiais militares do Rio de Janeiro, mostrou bem o tamanho do problema que Ricardo Balestreri tem pela frente. Dois dias antes da tragédia que chocou o país, o historiador assumiu a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), órgão ligado ao Ministério da Justiça, com a promessa de investir no “capital humano” dentro das corporações. Na primeira entrevista exclusiva depois de ser empossado no cargo de secretário, Balestreri reconhece que a polícia brasileira é maltreinada, mas não isenta a sociedade de uma parcela de culpa pela truculência dos homens fardados.

É assim, pela via intermediária, sem posturas radicais ou frases de efeito, que o secretário se posiciona. Apesar de ligado aos movimentos sociais de direitos humanos, de onde veio e com os quais sempre atuou, abomina discursos românticos. “Sei que, em casos incontornáveis, a polícia está autorizada a fazer uso legítimo da força e das armas. Friso isso porque no Brasil há um estúpido raciocínio binário: ou você é dos direitos humanos ou você defende a polícia”, diz Balestreri, que já morou numa favela por opção, quando atuava nas comunidades eclesiais de base no Rio Grande do Sul.

O fato de nunca ter vestido o colete e ido para as ruas não o constrange. Nos últimos 20 anos, conta, trabalhou como educador dentro de academias das polícias Militar e Civil no Brasil inteiro. “Posso me sentar e discutir segurança púbica com qualquer especialista policial, no mínimo no mesmo nível que ele”, garante. Dentro das metas do novo secretário, está o investimento no treinamento e no fortalecimento da polícia comunitária, que anda a pé e de bicicleta nas ruas e é próxima da população. Outro objetivo é, por meio do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), fazer com que metade dos gastos do governo federal com segurança seja destinada à capacitação dos policiais.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press
A cultura da polícia do Rio ainda é a cultura da guerra. isso precisa ser mudado.

Treinar é preciso

Nossa polícia está ficando mais violenta?
A sociedade brasileira é muito violenta. E como a polícia faz parte dessa sociedade acaba se tornando muito violenta também. Isso porque há um desespero, totalmente compreensível, por segurança. Mas por falta de conhecimento científico, a população imagina que a maneira de ter segurança pública é o que chamo de lógica da eliminação. Ou seja, que a gente vá para o confronto e elimine os bandidos. Esse senso comum, fruto de ignorância, repercute fortemente na atividade policial. E, se os policiais não forem bem preparados, acabam pensando que estão fazendo um serviço à sociedade e cometem erros, como esse que foi cometido agora no Rio de Janeiro (referindo-se ao menino João Roberto). E se, no lugar de uma criança, tivéssemos três jovens pobres, negros e trabalhadores? Eu pergunto: haveria toda essa comoção social? A sociedade não estaria batendo palmas e dizendo que morreram mais três bandidos? Não se diria que eles morreram em embate com a polícia? O que quero dizer com isso é que nos escandalizamos só quando o erro é flagrante, quando não é possível atribuir o episódio a um pretenso confronto. Obviamente, não é possível dizer que uma criança de três anos era narcotraficante, estava armada e representava perigo. Isso salta aos olhos da sociedade, mas somos hipócritas o suficiente para não nos lembrarmos de todas as outras monstruosidades ao longo da história que viraram meras estatísticas.

O senhor quer dizer, então, que a responsabilidade é da sociedade e não da polícia?
A polícia tem responsabilidade sempre. Mas o que acontece, em primeiro lugar, é que há uma repercussão do senso comum na polícia que não deveria ocorrer. Porque a polícia é um serviço altamente especializado que não pode pautar sua atuação pelo senso comum. E, nesse senso comum, acreditamos que estamos em guerra. Eu sempre digo: nós não estamos em guerra. Temos números de vítimas piores do que qualquer guerra. Só que pessoas superficiais confundem as coisas e saem afirmando que o Brasil está em uma guerra civil não declarada. Qual o perigo disso? Na guerra se admite tudo ou quase tudo, do ponto de vista moral. Na guerra, fuzilar gente dentro de um automóvel não seria nada extraordinário. A cultura da polícia do Rio ainda é a cultura da guerra, do embate. Isso precisa ser mudado.

Como mudar?
A qualificação da polícia brasileira, de maneira geral, com raras exceções, é muito deficiente. Mas não é só treinar tiros. Temos que quebrar paradigmas, abandonar um modelo de segurança pública copiado dos Estados Unidos, segundo o qual os índices de violência e de crime seriam reduzidos simplesmente com investimento em armas e viaturas. Eu jamais diria que não é importante investir nisso. Mas, como política predominante, é um imenso equívoco. Levantamento pedido por mim, quando assumi, mostrou que enquanto a média do investimento federal em viaturas no Brasil era de 30% do total destinado para o setor, em capital humano era de 3,5%. Aumentamos isso, na primeira gestão do governo, para 10,5%. Com o Pronasci (Programa Nacional de Segurança com Cidadania), pretendemos dar um salto para mais de 50%.

Mas a execução do Pronasci, lançado em agosto do ano passado, não está muito lenta?
Não. O Pronasci é uma realidade. São 127 mil policiais, entre guardas municipais, bombeiros e agentes penitenciários, fazendo cursos a distância. Temos 5.250 alunos em 82 cursos lato sensu de especialização em segurança pública oferecidos pelo Ministério da Justiça. As primeiras unidades habitacionais para policiais de baixa renda foram entregues em Porto Alegre. Chegaremos a 37 mil nos próximos quatro anos. E temos mais de R$ 700 milhões empenhados do Pronasci, cujo orçamento é de R$ 1 bilhão.

Por outro lado, o Fundo Nacional de Segurança Pública está com menos de 8% de execução. O que aconteceu?
A execução baixa é por conta dos projetos enviados pelos estados chegarem fora dos padrões legais e técnicos. Então temos de aprimorá-los e, só depois de aprovados, liberar o recurso. Mas dentro dos próximos três meses, teremos um aumento considerável na execução, eu garanto.

Em que medida ajuda e atrapalha ser ligado aos movimentos sociais? Há
algum descrédito por parte das pessoas em ter um secretário de Segurança Pública que nunca foi policial?

Minha origem nos movimentos sociais ajuda porque trago para a área da segurança pública experiências das quais ela precisa se alimentar. Falo da favela com conhecimento de causa porque já morei, por opção, lá. E quando falo da polícia, conheço profundamente os policiais, porque nos últimos 20 anos da minha vida trabalhei como educador e convivi cotidianamente com mais de 80 mil policiais, nas 27 unidades federadas. Posso me sentar e discutir segurança pública com qualquer especialista policial, no mínimo com o mesmo nível que ele. Portanto, tenho conhecimento e experiência para mudar a visão tático-operacional que sempre reinou na área da segurança. Não que não seja importante. Mas quando você só tem pensamento tático-operacional, tem sempre um desastre do ponto de vista da gestão.

O que o senhor acha da unificação da polícia, tema que voltou aos debates sobre segurança no país?
Quem entende de segurança pública sabe que ter mais de uma polícia é bom, porque evita o chamado Estado policial. Uma polícia compete positivamente com a outra e controla a outra. A unificação traz o perigo de você ter um grupo monolítico com muito poder e muita informação que controla o conjunto da sociedade. Temos que integrar as polícias, mas não unificá-las.

O senhor concorda com o uso das Forças Armadas na segurança urbana?
O Exército chega aonde ninguém mais chega, nos rincões mais pobres da população, e isso é louvável. Não podemos nos dar o luxo, na atual situação da segurança pública, de dispensar as Forças Armadas. Mas temos que definir qual o local de intervenção. São as fronteiras, particularmente as da selva. No meio urbano, não. As Forças Armadas não têm treinamento para fazer policiamento nas cidades.

Ouça na internet: trechos da entrevista

Extraído do Correio Braziliense de 13JUL08.

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